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Before It All

Em 1845, Petar II Petrović-Njegoš, popularmente conhecido como Njegoš, o Príncipe-Bispo, poeta e filósofo montenegrino, mandou construir uma pequena capela, desenhada por ele mesmo, em honra do seu tio e antecessor Petar I Petrović-Njegoš, em Jezerski vrh, o cume do Lovćen — a “montanha negra” que batiza o Montenegro —, a 1657 metros de altitude. Seria neste lugar que, seis anos depois, Njegoš pediria para ser sepultado como o seu último desejo e caso não se realizasse, lançaria sobre o seu povo uma maldição. Desde então, a capela de inspiração bizantina passou por uma série de ataques, destruições e reconstruções. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi destruída pelo Império Austro-Húngaro em 1916 e reconstruída entre guerras em 1925, durante a Primeira Jugoslávia. Em 1942, em plena Segunda Guerra, a capela foi atacada pelos italianos. Em 1951, seis anos após o fim da guerra, assinalava-se um século da morte de Njegoš e o governo jugoslavo de Josip Broz Tito decidiu demolir a capela e construir no seu lugar um mausoléu para o ex-príncipe. O projeto gerou uma enorme controvérsia assim como vários protestos, porém, acabou por seguir em frente. A capela foi destruída em 1972, e assim surgiu o Mausoléu Petar II Petrović-Njegoš, com a sua estética brutalista, desenhado pelo escultor croata Ivan Meštrović e inaugurado em 1974. No entanto, esta história ainda é um assunto polémico e polarizante, que reverbera silenciosamente pelo quotidiano montenegrino.

Ao construir uma narrativa em torno do Mausoléu Petar II Petrović Njegoš e da sua Capela antecessora, no Lovćen, Before It All procura analisar o tempo através do ciclo de destruição e reconstrução deste monumento, que espelha a complexa história da identidade de um povo. Inspirado no documentário Lovćen (1974), de Krsto Š’kanata, o Mausoléu é desconstruído em partes, a fim de estudar a sua arquitetura, refletir sobre o eterno retorno e criar um ambiente onde o Romantismo, de Njegoš e da sua capela do século XIX convivem simultaneamente com o Mausoléu Jugoslavo, através de uma paisagem sonora de uma noite de trovoada, característica do microclima da cidade de Cetinje. Na tentativa de fundir o passado com o presente e o futuro, permitindo que todo o tempo exista no momento presente — essa qualidade do tempo permite que o presente possua a qualidade de eterno, revendo assim o processo de leitura de um lugar, de um monumento e da história.

Inserido na paisagem montanhosa que rodeia Cetinje, a antiga capital real, fica-se com a sensação de que Njegoš nos observa do seu observatório nas alturas, do Lovćen, enquanto nós o contemplamos — olhando de baixo para cima. A partir desta sinistra e até caricata observação mútua, emerge um fascínio pessoal da artista pelo objeto arquitetónico que é o Mausoléu Petar II Petrović Njegoš, um lugar de finitude que fala sobre eternidade.

 

Beatriz Neto, 2020

           

38,8415045024,-7,07707379329 / 38,4295985372,-7,30221314393

A fronteira é atualmente um objeto dos media na produção de discursos de identidade e segurança, tornou-se impossível desligar das questões políticas e ideológicas que contribuem para redefinir e transformar a sua realidade física. Estes não são apenas obstáculos invisíveis, servem de ferramenta para recolher dados e produzir imagens, não são apenas foco de histórias e representações, mas categorizam e filtram em abundância o movimento de populações e identificam indivíduos. Nas últimas quatro décadas, as transformações das fronteiras revelam novas formas de organização no espaço-tempo e novas formas de o conceber. A fronteira é uma linha invisível do pensamento humano, que se torna visível quando materializada em mapas, é uma ficção com efeitos sociopolíticos genuínos. Esta linha define áreas e territórios, como forma de nos compreendermos fisicamente no mundo — organizamo-lo em entidades: concebemos o mundo agrupando-o e sedimentando-o num processo contínuo — somos de tal maneira um ser-fronteira, que não temos fronteira, somos seres mutáveis com necessidade de movimento, com necessidade de separar para depois ligar.

“Raia” — o nome da linha que tanto separa como une Portugal e Espanha, embora estável há muitos séculos, tem uma “porta” que ambas as nações nunca fecharam - a fronteira no território de Olivença. Noventa e sete marcos de fronteira nunca foram colocados nesta área, do marco fronteiriço 802 ao 899, aos quais se referem as coordenadas 38,8415045024,-7,07707379329 / 38,4295985372,-7,30221314393. Neste caso, esta parte da fronteira é uma linha invisível, representa essa mutabilidade e o seu movimento espaço-temporal ao longo da história. Beatriz Neto pretende questionar essa mesma mutabilidade e a dureza física que estes marcos de fronteira representam no espaço e no tempo. Ao cruzar este segmento da “raia”, a artista desafiou os marcos com o seu corpo ao tentar movê-los. O objetivo final era mover a fronteira, algo que a artista sabia à partida ser ilegal e praticamente impossível com a força individual do seu corpo. A duração de ambas as tentativas, registadas em vídeo, corresponde à duração do seu percurso do marco fronteiriço 802 ao marco fronteiriço 899, adicionando assim ao espaço da fronteira o conceito de tempo. Numa experiência secundária, a artista tenta remover o marco fronteiriço com o auxílio de força mecânica, no final, embora o marco fronteiriço não seja removido, a sua posição no espaço muda de subtilmente e o rio Guadiana reage.

Este espaço que nunca foi delimitado, é ocupado pelo rio que informalmente formaliza a fronteira. No entanto, a força da água propõe que o fixo se torne móvel, por isso faz com que nós, humanos, nos desloquemos com ela, fazendo parte dessa mesma linha, sendo nós essa mesma linha.

 

Beatriz Neto, 2019